“Familiar Face” foi gravado na Alemanha e selecionado entre 40 mil concorrentes, para ser exibido no Festival Internacional de Cinema Visions do Rèel na Suíça.
Evany Lira
evanylira@tribunacapixaba.com.br
Montanha/ES – “Familiar Face”, filme do jovem montanhense Ramon Ferreira Luz (27), gravado na Alemanha e exibido no Festival Internacional de Cinema Visions do Rèel na Suiça, será lançado, hoje (18) em Montanha, às 19 horas, no Teatro Municipal. A exibição tem entrada franca, e o filme é recomendado para maiores de 14 anos. No decorrer do dia 18, “Familiar Face” será exibido para estudantes, respeitando a faixa etária.
“Familiar Face” é um média-metragem, tem 45 minutos, e conta a história de Habibti, jovem sírio que tenta imaginar um futuro para si, como refugiado na Alemanha; e Markus, um alemão que busca compreender como viver um processo de troca com os novos moradores (refugiados) em seu país.
Ramon Luz diz que a história de Habibti, até por exigência do internacional do German Chancellor Fellowship da Fundação Alexander von Humboldt, que seleciona todos os anos profissionais do Brasil, da Rússia, dos Estados Unidos, da Índia e da China; tem ligação muito forte com sua história, que até hoje se sente migrante, fora de Montanha, sua cidade-natal, onde viveu a infância e adolescência. Diz ainda sentir o sabor do bolo de puba e do beiju que aqui degustava.
“Familiar Face” é o resultado de um projeto de Ramon Luz, selecionado pela Fundação Alexander von Humboldt, e que lhe rendeu uma bolsa na Alemanha. Primeiro bolsista capixaba a ganhar uma bolsa para fazer um documentário na Alemanha, Ramon Luz diz que quando se inscreveu para o programa de bolsas alemão German Chancellor Fellowship, era apenas um sonhador. E alerta que sonhos podem se tornar realidade. E que é esta realidade que deseja mostrar para os jovens de Montanha.
O cineasta montanhense teve outros trabalhos antes de embarcar para a terra que abrigou por 30 anos o Muro de Berlim. Produziu o curta “Doce Senhora do Rio”, que conta a história de uma moradora de Regência, que teve sua vida transformada após a chegada da lama causada pelo desastre da barragem de Mariana; e trabalhou como jornalista.
Agora na Alemanha, grava outros filmes e estuda geo-política e história, em inglês, na Universidade Livre de Berlin, a “Freie Universität”.
Ramon Luz concedeu entrevista ao Tribuna Capixaba, e fala sobre sua vida na Alemanha, e sobre seus projetos para o futuro. Leia na íntegra a entrevista.
Entrevista: Ramon Luz
Tribuna Capixaba – A área das artes era um sonho do menino Ramon?
Quando criança, na Rua Djalma Coutinho, eu ficava imaginando mundos surreais como cenário das histórias que criava para cada um dos meus bonecos. Era como se eles fossem personagens de uma série animada e eu fosse o diretor: não importava que o brinquedo fosse dos Power Rangers ou He-man, ali ele se despia da história que tinha nos desenhos animados da TV e passava a desempenhar o papel que eu o desse.
É engraçado lembrar disso sabendo que hoje gosto da função de diretor de cinema, mas não para filmar as estórias que eu crio e sim para emoldurar histórias da vida real.
Acho que trabalhar com jornalismo por 7 anos no Brasil foi o que mudou isso em mim. O contato com a realidade das pessoas e suas lutas e a responsabilidade de retratá-las para o público me fascinaram desde o início.
Em 2015, em meio às incertezas dos meses seguintes à chegada dos rejeitos de minério à foz do Rio Doce, gravei com a saudosa matriarca da região Dona Alda sobre como foi perder o rio que para ela era sustento, memória e ente querido (o vídeo está disponível online:
https://www.youtube.com/watch?v=NwW3Lp9qB98&t=2s).
O web-doc foi premiado pela Google e pela Associação Nacional de Jornais, a ANJ, e meu coração passou a bater ainda mais forte pela produção de documentários.
Tribuna capixaba – Por que a situação dos imigrantes chamou sua atenção?
Porque eu também me sentia migrante desde que saí de Montanha, em janeiro de 2009. Deixei a cidade para estudar comunicação em Linhares e senti na pele a inesperada sensação de não pertencer a esse novo lugar. Meu sotaque era diferente, as coisas que eu queria comer não encontrava por lá, como o bom e velho bolo de puba, o beiju… Eu era um estranho ali e nada evitaria atritos.
Essa experiência e outras que tive ao conhecer lugares como a Ilha de Páscoa, no Chile, chamaram a minha atenção para um fenômeno estudado pelo antropólogo francês Marc Augé. Marc escreve sobre o não-lugar: um espaço em que o indivíduo está, porém não reconhece identidade nem memória ali. Acho que foi nesse conceito de não-lugar que vivi por uns bons anos até escrever a minha própria história na nova cidade.
Quando decidi me inscrever para o programa de bolsas alemão German Chancellor Fellowship, descobri que o projeto que eu propusesse deveria ter conexão com a minha essência. Esse era eu naquele momento, por isso o projeto tomou esse rumo.
Tribuna Capixaba – Habibti, imigrante sírio, chegou a Alemanha em 2015 abalado pela mudança. E, você, como foi sua chegada à Alemanha?
Foi muito privilegiada! Fui o primeiro capixaba a entrar para o time de bolsistas internacional do German Chancellor Fellowship da Fundação Alexander von Humboldt, que seleciona todos os anos profissionais do Brasil, da Rússia, dos Estados Unidos, da Índia e da China. Como parte da bolsa, ganhamos um curso intensivo de alemão durante os três primeiros meses de estadia. Estudava cerca de 6 horas por dia na cidade de Bonn em pleno verão alemão. Estávamos tão felizes todos e muito animados para descobrir como seria realizar os projetos que propusemos nesse novo país.
Um tremendo oásis para quem estudou a vida inteira em escola pública e trabalha desde os 14 anos. Lembro também de perceber o quanto as pessoas na rua observavam o meu cabelo com muita curiosidade. Muitos me paravam para pedir foto até!
Tribuna Capixaba – O que o imigrante capixaba, que chegou à Alemanha em 2017, viveu das experiências do personagem Habibti?
Nossas histórias de migração são profundamente diferentes. A bolsa me encheu de privilégios nesse processo, me permitindo estudar alemão sem me preocupar com dinheiro, financiando um projeto de minha autoria e me ajudando com a burocracia dos vistos e permissões.
Habibti teve uma chegada coberta de traumas e tristeza, como ele mesmo narra em FAMILIAR FACE. Além de ter ido para a Alemanha contra sua vontade, ele ainda teve que enfrentar todas dificuldades de entrar com um pedido de refúgio oficial no país. Ele precisou provar mais de uma vez às autoridades alemãs que precisava de ajuda. Viveu humilhações seguidas de mais humilhações e perdas. Tudo por conta de uma guerra que ele não iniciou. É tudo muito injusto.
Foi a primeira vez na minha vida, cheia de dificuldades financeiras e outros obstáculos, que reconheci o quanto era privilegiado.
Tribuna Capixaba – Você disse em entrevista que “Por mais que o tempo passa você sempre vai ser um estrangeiro”. Fale um pouco sobre isto.
Eu continuo querendo o meu bolo de puba e o meu beiju. Não tem como apagar o capixaba-montanhense que eu sou. É dessa perspectiva, dessa base que Montanha me deu, que eu sempre verei o mundo, inevitavelmente. Os objetos diretos e indiretos que a professora Márcia Gardênia me ensinou a identificar na escola Domingos Martins me ajudaram a entender certas regras do alemão, por analogia, entende? A Alemanha não pode mudar essa essência, mas adiciona e continua adicionando camadas a ela.
Hoje falo a língua alemã com fluência, no entanto, não importa o quanto continue estudando, não perderei o meu sotaque – e nem quero!
Me sinto feliz, acolhido e a caminho da realização na Alemanha e sei que é onde quero morar, mas me tornar alemão não está em meus planos.
Tribuna Capixaba – Você disse que a vida de Habibti tem semelhanças com a tua. Só na Alemanha ou na sua vida em geral?
Nossas vidas antes da Alemanha têm semelhanças principalmente pelo fato de ambos sermos gays. Habibti também viveu as dúvidas que tive sobre minha sexualidade. Eu e ele dividimos as mesmas histórias de preconceito e perseguição por conta da nossa sexualidade e sinto que estamos na mesma fase de aceitação própria agora. Temos pessoas que nos amam ao nosso lado e sabemos que não há nada de errado com a gente. Respeitamos a todas e todos sem distinção e buscamos receber esse mesmo respeito de volta. Ambos recomeçando a vida com a ajuda de instituições alemãs.
Tribuna Capixaba – Você disse que “O futuro é um borrão”. Um borrão é uma mancha, pode ser um rascunho. O que você vislumbrou para o futuro como imigrante na Alemanha?
Um recomeço. Principalmente por causa da língua. Vinha trabalhando com jornalismo no Brasil antes de me mudar para a Alemanha e lá ainda não consigo exercer essa função porque é necessário muito mais que fluência na língua para trabalhar com isso. Quem sabe um dia eu chegue lá! Eu sei que vai demorar e venho construindo isso aos poucos, dia a dia.
Enquanto isso não acontece, gravo outros filmes e estudo geo-política e história em inglês na Universidade Livre de Berlin, a Freie Universität. Um passo após o outro.
Tribuna Capixaba – Quais os passos para a conquista da Bolsa Internacional da German Chancellor Fellowship da Fundação Alexander vom Humboldt?
O programa evoca uma competição internacional para escolher anualmente profissionais do Brasil, EUA, China, Índia e Rússia para passar uma temporada de 15 a 18 meses por aqui realizando um projeto próprio que converse entre país de origem e Alemanha. Até dez profissionais de cada país podem ganhar a bolsa por ano.
Minha proposta era realizar um documentário ou uma série de vídeos que abordasse criticamente o processo de integração de refugiados na Alemanha, levando em conta principalmente o ponto de vista dessas pessoas.
O processo de inscrição na plataforma online levou 177 dias, do primeiro acesso à entrega das cartas de recomendação final em setembro de 2016, entre elas a de um profissional atuante na Alemanha que havia aceitado ser meu mentor nesse trabalho. Sem a declaração de mentoria dessa pessoa a inscrição não seria válida.
Era abril de 2017 quando descobri que moraria de julho em diante na Alemanha. A fundação convida todos os finalistas do processo seletivo a vir ao país com tudo pago para participar da etapa final da seleção, com direito a entrevista individual, dinâmica de grupo e apresentação de pôster sobre o projeto.
Em 8 de julho de 2017, terminei um namoro, dei até logo à família e amigos e fui parar em Bonn, oeste da Alemanha, para participar da primeira fase do programa, um curso de alemão intensivo diário que duraria 3 meses. Após isso, me mudei pra Berlim onde coloquei meu projeto em prática.
Em novembro do ano seguinte, o filme era exibido pela primeira vez em um evento privado na cidade de Potsdam. “Familiar Face” tem 45 minutos e conta a história de Habibti, sírio que tenta imaginar um futuro para si em meio às dúvidas da vida de refugiado na Alemanha; e Markus, alemão que também busca entender sua parte nesse processo de troca com os novos moradores do país. A homossexualidade os une, inesperadamente.
Tribuna Capixaba – O média-metragem documental “Familiar Face” foi selecionado para o catálogo de novos talentos do Festival Internacional de Cinema Visions do Rèel na Suiça. Como se sentiu ao ver seu filme, único trabalho Brasil-Alemanha, selecionado entre mais de 40.000 candidatos, para o festival da Suiça?
Eu gritei muito quando soube! Era a resposta ao trabalho que fiz com todo meu coração e intuição, já que nunca tinha feito nada desse tamanho antes. Fiquei muito orgulhoso, mesmo custando a acreditar…
A equipe do festival foi muito receptiva e solícita comigo, me auxiliando em todo o processo de levar o filme até lá. Tive a sorte de encontrar passagens de ida e volta a preços que podia pagar e lá fui eu, cortar a Suíça de trem a trabalho.
Nyon se mostrou uma cidade romântica e aproveitei muito entre um compromisso e outro. Conheci cineastas coreanos, mexicanos, suíços, nigerianos, britânicos e seus trabalhos e pude mostrar o poster do meu filme pela primeira vez ao público. Ver a arte criada por Alexander Gadioli com logotipo de Cainã Morelleto ganhar vida e estar lá na Suíça, representando o meu filme foi também super emocionante.
Tribuna Capixaba – Equipe do filme
Para realizar o FAMIILIAR FACE eu contei com artistas incríveis ao meu lado. Na conceituação do projeto, tive a mentoria do Professor Doutor em questões de memória histórica alemã, Christian Ernst; e da fotógrafa e cinematógrafa Harebell Suzuki, que também assinou o trabalho de câmera do filme. Na captação de áudio, César Jório, Makis Asimakopoulos e Simon Peter. E na edição e finalização, Thiago Lula.
Tribuna Capixaba – Sobre o evento em Montanha
Estou extremamente realizado de ter a chance de realizar o lançamento do filme na minha cidade-natal, que eu tanto amo. A exibição de estreia vai acontecer na próxima segunda-feira (18), às 19 horas no Teatro Municipal de Montanha. O filme é recomendado para maiores de 14 anos e a entrada será franca!
Para possibilitar que mais pessoas consigam assistir ao filme, realizaremos sessões com alunos das escolas do município maiores de 14 anos durante todo o dia na segunda-feira (18).
Isso não seria possível sem o auxílio de Izabella Cardoso, com quem dividi a sala de aula por tantos anos na infância, e Eliana Baltar, que muito me ensinou nas aulas de português e que agora nos cede o Teatro Municipal para este evento.
Veja logo abaixo vídeo de Ramon Luz ainda em na Alemanha
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